loja Sempre tive vontade de colecionar vinis. Acabou que colecionar vinis caiu naquele lugar de julgamento dúbio da internet junto do “cinéfilo”. Mas acho que o que me impedia mais de mergulhar nisso, era na verdade, o receio de ter que gastar horrores pra satisfazer mais um hobby. De supetão, numa promoção inesperada num supermercado, comprei uma vitrola. No dia seguinte, fui numa loja de discos do meu bairro, uma loja imprensada entre dois outros prédios comerciais, com discos até o teto - um caos organizado. Comprei meus dois primeiros discos na seção de 5 reais, aqueles discos quase sem capas, que com muita sorte eles não vão pular nem uma faixa (aí, tive sorte).

Os discos em questão foram: a edição da “Nova História da Música Popular Brasileira” de Gilberto Gil e a edição “10 Anos Depois” de Jorge Ben.

Segundo um relatório da Pró-Música, em 2023, as vendas de vinil cresceram em 136%, superando o faturamento de CD’s e DVD’s pela primeira vez em 35 anos - 87% desse faturamento da indústria fonográfica pertence aos streamings, 12% da reprodução pública de faixas, 0,6% de vinis, sobrando 0,4% para os demais. Enquanto nos Estados Unidos a fatia da mídia física é de 18% e na Ásia, 49%. 1

O vinil não é tão frágil quanto o CD, se bem armazenado, manuseado e reproduzido, é capaz de existir desde 1964 e estar em pleno funcionamento. O que antes seria um problema, suas dimensões maiores, todo o seu apelo de ser físico (e as consequências disso), agora, talvez, sejam seu maior diferencial.

Ser físico significa não ser imediato, como no digital. Temos que parar para escolher o disco a tocar; temos que trocar o lado do disco; não temos um botão de pular faixa. Tudo nos condiciona a parar e ouvir o álbum de cabo-a-rabo, slow-listening como chamam - um movimento contra a ansiedade de zapear por músicas. É sintomático o que aparece como “tendência Gen-Z”, são manifestos contra o aceleracionismo digital, não é saudável nem para o ambiente que vivemos nem para nosso psicológico viver tão imerso de informação ou substituir a forma que nos relacionamos por um ambiente digital programado.

Entra a lógica de Jonathan Crary (24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono), de que essa torrente informacional, em nossos corpos não treinados, faz parte um modelo de negócios destas plataformas:

“O empobrecimento sensorial, a percepção reduzida ao hábito e as respostas programadas são resultados inevitáveis de nosso alinhamento aos inúmeros produtos, serviços e “amigos” que consumimos, administramos e acumulamos durante a vigília” (CRARY, 2016, p.114)

O físico promove encontros não-programados, toda interação que realizamos no mundo não-material, realizamos com um objetivo definido sem desvios no caminho. Enquanto no mundo material, na loja de discos do meu bairro, eu posso encontrar um álbum que é uma sessão ininterrupta de Jorge Ben fazendo novas interpretações de seus maiores sucessos, que o Spotify nunca iria me recomendar (aliás, alguém sabe como faz pra ele parar de me recomendar Wilson Simonal cantando Alegria, Alegria ao final de toda playlist de MPB que eu esteja ouvindo?).

vinis

A outra grande qualidade do físico é que por natureza, ele é seu próprio registro de alterações que possa sofrer ou marcas do tempo. É resistência da matéria contra o mundo convertido em imagem. No não-material uma arqueologia é mais difícil. Um arquivo em seu Kindle pode sofrer a qualquer momento uma alteração em sua edição de maneira irrastreável ao usuário. Um e-book pode simplesmente ser descontinuado e sumir de sua biblioteca virtual, já que o que temos é uma licença restrita e não-exclusiva, não uma propriedade sobre um pertence - ver caso recente da Ubisoft com o jogo “The Crew”. 2

Plataformas, acima de tudo, vendem a ideia de que é preciso estar nelas para que algo tenha relevância, se tornou o nosso validador cultural. Por se basearem numa estratégia de negócios insustentável - operar no negativo até possuírem quase a totalidade da fatia de mercado - estamos entrando numa era de revisão dessas dinâmicas de consumo da mídia digital. Estamos passando a olhar com mais carinho pra aquele DVD empoeirado no fundo do armário e pensando “esse não tem na Netflix”, o preço das assinaturas está aumentando por conteúdos de qualidade duvidosa que nem mais assistimos. Locadoras estão voltando 3, lojas de discos estão aí, no futuro estaremos recebendo indicações de filmes do senhorzinho dono da locadora ao invés do algoritmo de gosto musical cafona.

(Confesso que esse tipo de vídeo aqui também me colocou no vício e me fez pensar nisso tudo): Vinyl mix: Brasilidades dançantes - YouTube